sábado, 11 de novembro de 2023

BIBLIOTECA VERDE - Carlos Drummond de Andrade


Papai, me compra a Biblioteca Internacional de Obras Célebres.
São só 24 volumes encadernados
Em percalina verde.
Meu filho, é livro demais para uma criança.
Compra assim mesmo, pai, eu cresço logo.
Quando crescer eu compro. Agora não.
Papai me compra agora. É em percalina verde,
Só 24 volumes. Compra, compra, compra.
Fica quieto, menino, eu vou comprar.
Rio de Janeiro? Aqui é o coronel.
Me mande urgente sua Biblioteca bem acondicionada, não quero defeito.
Se vier com um arranhão recuso, já sabe:
Quero devolução de meu dinheiro.
Está bem, Coronel, ordens são ordens.
Segue a Biblioteca pelo trem-de-ferro,
fino caixote de alumínio e pinho.
Termina o ramal, o burro de carga
vai levando tamanho universo.
Chega cheirando a papel novo, mata
de dinheiros toda verde.
 
Sou o mais rico menino destas redondezas.
(Orgulho, não; inveja de mim mesmo)
Ninguém mais aqui possui coleção
das Obras Célebres. Tenho de ler tudo.
Antes de ler, que bom passar a mão no som da percalina, esse cristal de fluida transparência: verde, verde.
 
Amanhã começo a ler. Agora não.
Agora quero ver figuras. Todas.
Templo de Tebas. Osíris, Medusa,
Apolo nu, Vênus nua… Nossa Senhora, tem disso nos livros?
Depressa, as letras. Careço ler tudo.
A mãe se queixa: Não dorme este menino.
O irmão reclama: apaga a luz, cretino!
Espermacete cai na cama, queima a perna, o sono.
Olha que eu tomo e rasgo essa Biblioteca antes que pegue fogo na casa.
Vai dormir, mesmo, antes que eu perca a paciência e te dê uma sova.
Dorme, filhinho meu, tão doido, tão fraquinho.
Mas leio, leio. Em filosofias
tropeço e caio, cavalgo de novo
meu verde livro, em cavalarias
me perco, medievo; em contos, poemas me vejo viver.
Como te devoro, verde pastagem.
Ou antes carruagem
de fugir de mim e me trazer de volta à casa a qualquer hora num fechar de páginas?
Tudo que sei é ela que me ensina.
O que saberei, o que não saberei nunca, está na Biblioteca em verde murmúrio de flauta-percalina eternamente.

                                                                                               Carlos Drummond de Andrade