Canção
porque (não) Morres
Este é o
último livro, prometia
como alguém
que tivesse esquecido
que assim
sempre tinha sido - aquele
era o último
e depois que alguém viesse
fechar a
porta contra o som do mar.
- Pagava por
jogar no escuro
e por
aqueles ardis já gastos
com que
pensava e não pensava
enganar a
morte branca e vermelha.
- Ah e não
esqueças: - deitar fora a chave
Canção como
não morres
se é a morte
que em ti sobe até à fonte
do sangue,
até à flor do sal queimando
os dedos;
até à boca que por te cantar
se acende
negra; até à copa
das árvores
que distribuem o sol
sobre o
corpo morto do amor
amante e
desamado?
Ou antes: de
que morres, por que morres
tu, canção
já sem voz, já
sem o canto,
- já sem outro assunto
de momento,
me despeço de todos vós-
quem falou
agora? - Que importa quem falou?
- Que
importa? Nada e nonada. E, sim, tudo
é tudo o que
importa, para quem veio
mandado a
que chamasses quem
tivesse
chamado.
Canção, o
teu sopro é quente
e têm sede
os teus ventos, esses animais
do ar que
por mil tubos sopram no corpo-músico
a verdade
que calcinou os amantes que já o veneno
beijara até
à flor do sangue.
depois, as
palavras em que te perderas serão
cinzas sobre
o mar e espuma suja
entre as
rochas. Que atraso ou afecto
te prende
ainda a esta margem
Por quem
esperas tu
canção ainda
agora
que já por
todo o céu
a terra nos
esqueceu
Morresses,
agora, canção
enquanto
corres ainda pelo sangue
de quem escuta
- e
morrerias no
fulgor último
que ao
fundo, no horizonte
da
linguagem,
da própria
linguagem
se afasta
já, e abandonando vai
os seus
bairros periféricos, despedindo-se
da tristeza
dos migrantes derradeiros;
queimando
página a
página
os últimos
barcos.
Manuel
Gusmão, in 'Migrações do Fogo'
Manuel Gusmão, (Évora, 1945 – 2023), poeta, ensaísta, tradutor e professor
universitário português.
Licenciou-se em Filologia Românica pela Universidade de Lisboa,
tendo-se doutorado com a tese sobre a Poética de Francis Ponge (1987).É
professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, desenvolvendo
trabalho nas áreas da Literatura Portuguesa, Literatura Francesa e Teoria da
Literatura. É membro da Associação Internacional de Literatura Comparada e
fundador da Associação Portuguesa de Literatura Comparada.
Pertenceu às redacções das revistas O Tempo e o Modo e Letras e Artes
e foi colaborador permanente do Jornal Crítica, entre 1961 e 1971. Foi fundador
das revistas Ariane (revue d’études littéraires françaises), que se publica
desde 1982, e Dedalus, da Associação Portuguesa de Literatura Comparada, desde
1991). É coordenador editorial da revista Vértice desde 1988.
É tradutor português de poemas de Francis Ponge.Vencedor, em 2004, do
Prémio D. Diniz, da Fundação Casa de Mateus; do Prémio Vergílio Ferreira,
atribuído pela Universidade de Évora (2005). Fonte: Wikipédia