Sinopse: "José Maria Couto, nascido em Vila do Conde (1930), é um poeta
de sentimentos e afectos como claramente se patenteia na edição da sua Obra
Poética, que engloba os livros publicados entre 1954 e 1987, além de alguns
poemas inéditos. Lida no seu todo poético e na sua propositada ordenação
cronológica, melhor se afirma esse sentido pessoal de ser quase sempre uma
'poética de amizade', na recorrência a lugares de passagem ou na evocação de
pintores e poetas que se cruzaram no seu caminho.
Começando por ser uma poesia de nítida intervenção e
combate, bem denunciadora de uma certa realidade política e social ('No Campo
da Morte Lenta / é proibido sonhar. /Passa-se o dia a sofrer / vendo a morte,
sem saber / qual de nós virá buscar / ao Campo da Morte Lenta'), enveredou a
partir de Poetas e Geografia de Paz para uma expressividade sentida e
endereçada aos poetas de seu convívio ou admiração, ainda e sempre na nostalgia
de uma Vila do Conde de infância e adolescência e na comovida lembrança de seu
avô Firmino, em casa de quem pôde descobrir as primeiras leituras em grossos e
pesados livros encadernados, como Dom Quixote ou Jerusalém Libertada.
E por aí ficou assim traçado o caminho do poeta que José
Maria Couto havia de ser na veneração de Junqueiro e Augusto Gil e mais tarde
de José Régio, Saul Dias ou Fausto José, para depois conhecer Cesário, Pessoa
ou Mário de Sá-Carneiro já pelos seus próprios passos. Mas de todo esse
convívio ou conhecimento literário, sempre na descoberta de outros mundos, pôde
criar, no calmo acumular de poemas, uma vocação poética bem própria e que se
extrema num lirismo de afectos e memórias através das evidentes referências
que, por exemplo, faz nos poemas do seu Calendário Lusitano, como neste em
louvação de Fernando Lopes Graça:
Canções heróicas cantei-as
no pátio duma prisão
amordaçado cantei-as
cantei-as com o coração.
Mas é exactamente nesse trajecto marcado por muitas sombras
e lugares que José Maria Couto consolida uma poética ordenada ou tecida no
ritmo melodioso das palavras ou imagens, que se erguem como a voz e a fala de
quem não pede licença a ninguém para 'cantar' como sabe e quer as pedras ou
poemas do seu próprio 'cancioneiro'. Porém, não se trata de um percurso poético
que se defina por uma excessiva imagística e antes se revela, de modo
intencional, como forma directa e incisiva de no limiar das águas poder dizer
que também ele procura ser um 'esforçado operário da escrita', ou seja, de uma
escrita poética que se revê noutros poetas, se enleia com muitos deles em
idêntico discurso, mas sempre com terra à vista por onde faz a sua navegação,
por entre uma brevidade sentida e sincera, como neste poema evocativo de
Eugénio de Andrade:
Feliz quem traz consigo a dor e a canta
E nela se reconhece.
Espanta
É haver quem esquece.
E a consciência poética desse 'fazer' poemas oferece, na
leitura global da poesia de José Maria Couto, a dimensão de um poeta que se tem
mantido discreto e quase silencioso, fora das capelinhas ou círculos literários
por onde a fama se forja, mas, enfiado na sua fortaleza e o mar de Matosinhos
diante do olhar, daí nos envia os seus 'recados' em forma de poemas simples e
sempre comovidos, como nesta memória de Vila do Conde já perdida na
adolescência:
Havia sempre, ao fim da tarde,
Numa vertigem ascendente,
As irreais cores com que o sol arde,
Num grito lancinante, o seu poente.
Trata-se, pois, de uma sinceridade que se reconhece nos
verdadeiros poetas, sejam ou não do permanente convívio dos escaparates ou se
afirmem pelas trombetas críticas de quem só descobre o já descoberto e tantas
vezes se mostra incapaz de um salto no escuro, na aposta em poetas que possuem
uma dimensão própria, prosseguida no lento caminhar e na soma dos livros com
que enriquecem a sua bibliografia. Mas, no caso pessoal de José Maria Couto,
esta edição da sua Obra Poética coloca em destaque uma voz muito própria,
singela e marcadamente lírica, compreensiva e por vezes reveladora de uma
'geografia sentimental' que não enjeita nada do que sente e vê em seu redor,
porque mesmo nas poesias de louvor a outros poetas, sempre pretende, como
confessa, interpretar o seu perfil quer do ponto de vista da compreensão
estética e da própria aproximação aos conteúdos e é maneira criativa de cada um
deles, como também deseja evocar momentos ou circunstâncias que deles melhor o
aproximem ou no que neles tanto estima.
Mas, fazendo esta declaração poética, José Maria Couto
constrói assim uma clara 'poética de amizade' que é sua por saber coloca-se na
companhia de pintores e poetas que viajam nas vagas de uma mesma peregrinação
ou espalham estrelas num céu coberto de asteróides e na sua natural linguagem
sedimenta assim uma viagem de circum-navegação pelo mar calmo de muitas
palavras e imagens."
Serafim Ferreira
José Maria da Silva Couto
OBRA POÉTICA (1954-1996)
Ed. Câmara Municipal de Vila do Conde